Saiu na VEJA (on-line)


A internet é um espaço aberto a todo tipo de manifestação, inclusive as muito negativas. Tirando proveito do anonimato, pululam sites ligados a organizações racistas e nazistas, ao comércio de pornografia infantil e até a grupos terroristas. Mesmo nessa enxurrada de vilania, choca a existência de tantos endereços dedicados a incentivar a anorexia e a bulimia, graves distúrbios alimentares de ordem psicológica, capazes de levar à morte.

Em uma rápida busca pela internet, encontram-se mais de cinqüenta sites, blogs e grupos de discussão em português enaltecendo as doenças. Há mais páginas na internet incentivando a anorexia e a bulimia do que sites de orientação médica sobre o assunto. Com idéias importadas dos Estados Unidos (em inglês há centenas de sites desse tipo), defendem a tese enganadora de que a anorexia não é uma doença, mas um estilo de vida e uma escolha. Esse tipo de apelo é especialmente perigoso, porque o distúrbio atinge sobretudo as jovens entre 12 e 20 anos, idade em que as pessoas são mais vulneráveis a discursos extravagantes.

Os sites dão dicas de dietas ultra-radicais, ensinam o que fazer para driblar a fome e até mesmo como enganar os pais para que eles não percebam o problema. Também trocam experiências sobre o uso de diuréticos, laxantes, hormônios de tireóide e pílulas para emagrecer. A anorexia é tratada como uma "amiguinha", a quem chamam carinhosamente de Ana. A bulimia – quando o doente come compulsivamente e depois vomita a comida para evitar engordar – é apelidada de Mia. Ambas são tidas como aliadas no sonho de alcançar um corpo esquelético. Daí os nomes sugestivos dos sites: Amiga Anna, Miss Anna, Amo Anna, Miss Diet Soda, Diet for Ever.

Algumas das dietas sugeridas se resumem a 400 calorias por dia – menos do que recebiam os prisioneiros do campo de concentração de Treblinka na II Guerra. "Terça e quarta eu fiz jejum. Quinta comi uma pêra e uma maçã. Na sexta, só uma saladinha", vangloria-se uma garota que usa o apelido de Maneka 36. Também defendem a prática do "no food", períodos de até sete dias em jejum, bebendo apenas água. As páginas são ilustradas com fotos de mulheres magérrimas, ossos à mostra, e algumas celebridades femininas de notável magreza.

Para atingir seu ideal de beleza, as integrantes da turma da Ana e da Mia dizem que para emagrecer e ficar linda é preciso ter nojo de comida. "Para os médicos, anorexia pode ser uma doença, mas para mim é um estilo de vida", disse a VEJA uma estudante de direito de Brasília que se identifica como Aninha. Criadora de um grupo de discussão na internet que já tem a participação de quase 300 garotas, a estudante não acha que possa prejudicar alguém com suas idéias descabidas.

"Ninguém é obrigado a participar." Aos 19 anos, 1,68 metro de altura, Aninha pesa 56 quilos e quer chegar aos 48, mesmo que isso traga sérios riscos a sua saúde. Certa vez tentou fazer um jejum de sete dias, mas só agüentou três. "O importante é atingir meu objetivo principal: emagrecer", diz.

Na vida real, anorexia é um distúrbio com elevadíssima taxa de mortalidade, em torno dos 20%. É mais que os 15% de óbitos por câncer de mama. Estima-se que no Brasil bulimia e anorexia afetem 100.000 adolescentes, dos quais 90% são garotas. Os dois grupos de maior risco são as estudantes de balé e as aspirantes a modelo, duas atividades banidas para as gordinhas. As mortes ocorrem principalmente por parada cardíaca, insuficiência renal e suicídio. "Anorexia e bulimia são um problema crescente no Brasil e no mundo. Dentre as doenças psiquiátricas, são as que causam mais mortes", diz a psiquiatra Paula Melin, diretora do Núcleo de Transtornos Alimentares e Obesidade (Nuttra), do Rio de Janeiro. Para Paula, a existência dos sites pró-anorexia é reflexo de uma cultura doentia que exalta o corpo e a aparência acima de qualquer outra consideração. "Vivemos na era da satanização do gordo", comenta a psiquiatra. "Os jovens têm medo de ser discriminados e excluídos por estarem acima do peso. Daí a obsessão por perder peso rápido."


Coordenada por Paula, uma pesquisa com mais de 3.000 adolescentes de ensino médio do Rio de Janeiro revela que 75% dos jovens estão insatisfeitos com o próprio corpo. Outros estudos mostram que as dietas têm uma estreita relação com as doenças. "Para adolescentes e crianças, a dieta é um prática particularmente arriscada", diz a psiquiatra. "Compromete o crescimento normal e os põe em risco de desenvolver um transtorno alimentar."

Pesquisa realizada na Austrália constatou que pessoas que seguiram dietas rígidas têm dezoito vezes mais probabilidade de ter um transtorno alimentar. Mesmo mulheres que fizeram dietas moderadas tinham um risco cinco vezes maior do que as que nunca haviam feito regime. As portadoras de anorexia possuem algumas características em comum. São meninas bonitas e inteligentes, mas retraídas socialmente. Têm medo exagerado de engordar, são obcecadas por dietas e contam as calorias de tudo o que comem. Como não admitem ter uma doença, só procuram tratamento quando a situação já é bastante grave. Por isso, a participação da família é fundamental na prevenção.

Os especialistas recomendam que os pais sejam implacáveis na hora de forçar o filho doente a comer. Nem que para isso sejam necessárias horas e horas à mesa. Também vale dar comida na boca e prometer recompensas em troca de um prato raspado. O transtorno pode levar a um estágio de desnutrição que exige internação e tratamentos multidisciplinares com psiquiatra, psicólogo e nutricionista. Muitas vezes são indicados antidepressivos. As pessoas precisam ser acompanhadas por anos, porque as recaídas são freqüentes.

"Elas nunca acham que estão magras o suficiente", diz o psiquiatra paulistano Rubens Pitliuk. "Quando se olham no espelho, vêem os seios e o abdômen grandes demais." Para Pitliuk, essas características potencializam os riscos dos sites que cultuam a doença. "Esses sites estão ensinando às pessoas uma maneira de se matar."

O número de casos da doença aumenta junto com o culto à magreza. Na Santa Casa da Misericórdia do Rio de Janeiro, há uma fila de 150 pessoas aguardando tratamento. No Ambulatório de Bulimia e de Transtornos Alimentares do Hospital das Clínicas de São Paulo (Ambulim), são 200 pessoas na fila. Outra preocupação dos especialistas é que a doença cresce entre garotas mais novas.

"De dois anos para cá começaram a aparecer casos cada vez mais precoces", observa o psiquiatra Táki Cordás, coordenador do Ambulim. "Já atendemos meninas de 11, 12 anos de idade." São casos como o da estudante carioca K., 12 anos. Aos 9, K. procurou um médico porque estava um pouco gordinha. Fez uma dieta e emagreceu. Aos poucos, o medo de engordar de novo foi tomando conta, e ela decidiu parar de comer. Na escola, dava o lanche às colegas. Em casa, jogava a comida do prato fora quando a mãe não estava olhando. Contava as calorias de tudo o que ia comer.

"Toda noite eu programava o que ia comer no dia seguinte", lembra K. "Cada vez tirava mais coisas." No período de um ano, ela perdeu quase 20 quilos. Já tinha dificuldade até mesmo para andar. Em julho do ano passado, pesando 30 quilos – ela tem 1,56 metro de altura –, K. foi internada em um hospital correndo risco de morte. Seis meses depois de iniciar o tratamento no Núcleo de Transtornos Alimentares e Obesidade, do Rio de Janeiro, K. já recuperou quase 10 quilos. Mais importante do que ganhar peso, foi a mudança de mentalidade. "A terapia está me ajudando muito. Finalmente a comida está deixando de ser um inimigo para mim."

Sinal de alerta:

A adolescente pode sofrer de anorexia se...


...perde peso rapidamente

...demonstra medo intenso de engordar

...fica obcecada por dietas e conta as calorias de tudo o que come

...acha que está gorda mesmo estando abaixo do peso

...pratica exercícios físicos em excesso

...se isola na hora das refeições

...deixa de menstruar por três meses ou mais

Como se morre de fome:


Privado de alimentação, o organismo começa a devorar a massa muscular. A temperatura do corpo cai e surgem sintomas como fadiga, fraqueza e frio exagerado. Os efeitos podem ser devastadores

• Morte por parada cardíaca provocada pela perda de potássio, redução do tamanho do coração e diminuição do volume de sangue bombeado

• Morte por insuficiência renal causada pela desidratação

• Comprometimento do sistema imunológico pela perda excessiva de nutrientes, que reduz a capacidade de combater infecções

• Osteoporose devido à falta de cálcio e de vitamina B

As dicas dos "amigos" da doença:


• Nunca diga a eles que você se acha gorda ou feia

• Diga que vai almoçar com amigas ou na lanchonete da escola. Peça dinheiro e guarde para coisas mais importantes do que comer

• Se seus pais insistirem para você comer, leve o prato para o quarto e jogue a comida em um saco plástico e depois no lixo

• Para despistar, coloque embalagens de bala, chocolate ou salgadinhos em pontos estratégicos da casa

• Não conte a ninguém que você tem Ana (anorexia), nem a sua melhor amiga

• Guarde laxantes e remédios para emagrecer em um lugar bem escondido, como em bolso de roupas que você não usa

• Na hora de vomitar a comida, não faça igual a uma retardada saindo direto da mesa para o banheiro. Ajude sua mãe a tirar a mesa e diga que vai tomar um banho. Ligue o chuveiro e faça o mínimo de barulho possível

Por Ariel Kostman

http://veja.abril.com.br/110204/p_090.html

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